domingo, 1 de junho de 2008

Violência impune







Estatísticas indicam que mais de 80% dos crimes contra crianças e adolescentes em Salvador não chegam à Justiça

Jaciara Santos

Mais de 80% dos casos de violência contra a criança e o adolescente registrados em Salvador ficam impunes perante a Justiça. Tomando por base os dados de atendimento da delegacia especializada – a Derca, localizada no bairro de Brotas –, o quadro é preocupante: das quase três mil ocorrências notificadas em 2007, apenas 483 foram apuradas em inquérito regular, parte dos quais remetida à Justiça.

Ainda no campo das aferições meramente estatísticas, dados do Ministério Público Estadual reforçam a certeza de que a maioria dos autores desse tipo de crime, mesmo identificados, termina ficando impune. Afinal, dos 677 casos recebidos pela Central de Inquéritos no ano passado, somente 274 foram denunciados à Justiça e transformados em processos.

Mas, mesmo a transformação em ação penal não é garantia de punição. Consulta processual de 25 crimes envolvendo o público infanto-juvenil e registrados em 2007 aponta que apenas cinco dos acusados permanecem presos. Nenhum foi ainda julgado.

Exemplo desse quadro que tangencia a impunidade, o biscateiro Sivaldo Ferreira da Silva, 30 anos, figura como réu em um dos casos que causou indignação na comunidade, no ano passado. Em 4 de outubro, uma quinta-feira, ele foi acusado de estuprar a sobrinha da mulher dele, uma criança de apenas 2 anos.

O crime aconteceu na casa em que vítima, agressor e demais familiares moravam, no bairro do IAPI. Ao ser preso, o acusado não só admitiu o ato, como arriscou uma defesa rasa: disse ter sido “seduzido” pela criança. Denunciado pelo Ministério Público por estupro, teve a prisão relaxada dois meses após o crime e responde em liberdade perante a 2a Vara Especializada Criminal pela Infância e Juventude.

Direitos - Por mais repulsa que o delito cometido por Sivaldo possa despertar, é preciso preservar o princípio constitucional da presunção da inocência, destaca o juiz Paulo César Bandeira de Melo Jorge, 43, titular da 2a Vara. “Qualquer réu, seja ele quem for, tem direitos”, alerta. Aos olhos da Justiça, embora confesse o crime, o agressor atende aos requisitos da liberdade provisória: não possui antecedentes criminais, tem residência fixa e emprego definido, explica o magistrado.

Casos desse tipo são rotina nas 1a e 2a Varas Especializadas Criminais pela Infância e Juventude, admite Melo Jorge, cioso no cumprimento da lei. Para evitar que as brechas legais dêem margem à impunidade, ele busca agilizar ao máximo o julgamento sob sua tutela. “Temos hoje 1.500 processos em andamento, grande parte já em fase de sentença”, contabiliza, enquanto exibe a mesa de trabalho livre de papéis.

Mas, admite o juiz, há situações em que o processo tem tramitação mais lenta por falta de representação da vítima. É o que está ocorrendo, por exemplo, com a ação penal instaurada na 2a Vara contra o delegado da Polícia Civil Antônio Carlos M. Santos, o agente policial Júlio José de Oliveira Filho e o microempresário Orlando da Cruz.

Réus num processo por exploração sexual de uma adolescente de 17 anos, eles se beneficiam do desinteresse da vítima, que não atende à convocação do juiz Melo Jorge para comparecer às audiências. “Tanto a moça como a mãe desapareceram”, confirma o magistrado. Os autos deram entrada no cartório em maio do ano passado e não há registro de movimentação desde então.

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Preconceitos e estigmas

Os artifícios legais podem até facultar a impunidade, mas, para a advogada Jalusa Arruda, 29 anos, integrante do corpo jurídico do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente Yves de Roussan (Cedeca), há muitos outros fatores, principalmente quando se trata de crimes de natureza sexual. “Esbarramos em preconceitos, estigmas e na dificuldade da própria família em efetivamente desejar que o agressor seja punido, pois, na maioria das vezes, trata-se de uma pessoa muito próxima da vítima, como pai, irmão, padrasto, tio...”, atesta.

Há consenso entre os especialistas quanto à multiplicidade de aspectos que contribuem para a impunidade de crimes sexuais. Ou “para a dificuldade em produzir provas”, como prefere a promotora Sandra Patrícia Oliveira, 38, da Promotoria Criminal da Infância e Juventude. “Alguns tipos de violência não deixam vestígio, como o sexo oral e as carícias indevidas”, pontua. “Além disso, o acusado é quase sempre aquele homem de bem, uma pessoa acima de qualquer suspeita e que nega a autoria”, assinala.

Na dúvida, como preceituam os mais elementares princípios do Direito, é preferível absolver um culpado a condenar um inocente, rende-se a representante do Ministério Público. “É uma decisão difícil, mas nem sempre é possível denunciar uma pessoa apenas com base no relato de uma criança de 2 anos”, pondera. Ela aconselha vítimas e seus representantes a sempre se municiarem de provas que possam dar consistência às denúncias.

Embora evite críticas à polícia judiciária, a promotora admite que o açodamento de delegados e agentes pode comprometer o andamento de um processo. É o caso de prisões em flagrante que são relaxadas por serem consideradas ilegais. “Existem formalidades que precisam ser observadas, como a comunicação ao juiz num prazo de até cinco dias”, adverte. Como, nem sempre, os critérios são obedecidos, acusados como o biscateiro Sivaldo da Silva, autuado por estuprar uma criança de 2 anos, teve uma meteórica passagem pela cadeia. Preso no início de setembro, voltou para casa antes do Natal.

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Investigação compromete resultados

Para o coordenador do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente Yves de Roussan (Cedeca), Waldemar Oliveira, 63 anos, a disparidade entre crime e punição reflete a incapacidade de investigar da polícia judiciária. “Se a polícia investigativa cumprisse seu papel não haveria tanta impunidade”, entende. Ele respalda o discurso em números. Afinal, de 1997 a 2003, foram registrados 966 homicídios na capital e região metropolitana de Salvador. Destes, apenas 106 tiveram a autoria definida em inquérito remetido à Justiça e somente 23 dos casos foram a júri.

Apontada como vilã da impunidade, a polícia judiciária se defende. “Não vou falar sobre homicídios, porque não é da nossa alçada”, avisa a delegada Anna Paula Garcia Oliveira, 37 anos, que dirige há um ano e meio a Delegacia de Repressão a Crimes contra a Criança e o Adolescente (Derca). “Mas, no que se refere à violência sexual e aos maus-tratos, por exemplo, não existe propriamente uma impunidade”, argumenta.

É com base nos números do Centro de Documentação e Estatística Policial (Cedep), referentes às ações da delegacia no ano passado, que ela contesta a idéia difundida na sociedade sobre a impunidade dos agressores. Embora de um total de 2.903 procedimentos, somente 483 tenham se transformado em inquéritos (o equivalente a 16,63%) ela rebate que “esse dado não é definitivo para avaliar a não punição”.

Disparidade - Em defesa de seu argumento, ela chama a atenção para a instauração de 613 termos circunstanciados (registro de ocorrências de menor potencial ofensivo), geralmente punidos com penas alternativas ou de até um ano de reclusão. Mas, a matemática não corrobora o discurso oficial: a soma de inquéritos e termos circunstanciados instaurados perfaz um total de 1096 procedimentos – somente 37,75% dos registros.

Mesmo pedindo cautela quanto à leitura dos dados que sinalizam a disparidade entre crime e castigo, a delegada Anna Paula Garcia admite alguns gargalos na apuração dos delitos contra o público infanto-juvenil. No caso de exploração sexual, por exemplo, a vítima se recusa a colaborar e até hostiliza a polícia, revela. “Ela não se sente vítima e até apóia quem a explora”, constata. “Nessas circunstâncias, sem testemunhas e sem laudos que provem a materialidade, ficamos sem poder indiciar os responsáveis”, lastima.
No ano passado, o total de ocorrências de natureza sexual registradas na Derca chegou a 358 casos, entre estupros (129) e atentado violento ao pudor (229).

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NA FORMA DA LEI

PROFERIDA em 9 de agosto do ano passado, a sentença aplicada ao réu A.F.S.* demonstra o quanto a lei é tolerante em relação aos autores de crimes sexuais. De acordo com arrazoado da juíza Rita de Cássia Nunes, titular da 1a Vara Criminal da Infância e Juventude, ele “(...) possui a personalidade voltada à prática de crimes de natureza sexual (...)” e, devido ao alto poder ofensivo do delito, foi condenado a 18 anos de reclusão em regime fechado.

Mas, para além da compreensão do cidadão não afeito às nuances da lei, A. F. não ficou preso. Por ser tecnicamente primário e haver respondido a todo o processo em liberdade, ganhou o direito a permanecer solto enquanto recorre da sentença. A violência de que ele é acusado (crime contra os costumes, tendo três meninas como vítimas) aconteceram em 2004.

JULGADO pelo juiz Paulo César Bandeira de Melo Jorge, titular da 2a Vara Criminal da Infância e Juventude, o réu J.F.S.F. foi considerado culpado. Segundo a sentença anunciada em 2 de março do ano passado, ele teria agido “motivado pelo desejo de satisfazer a sua lascívia” e acarretado “conseqüências (...) graves, devido aos sérios efeitos de natureza psicológica e comportamental na pessoa da ofendida”.

J.F. teve sua pena fixada em seis anos de reclusão em regime fechado, na Penitenciária Lemos de Brito. Recorre em liberdade “por ser primário e sem antecedentes criminais”. Acusação que pesa contra ele: abuso sexual contra uma garota.


Por orientação do Cedeca, foram preservados os nomes de réus e vítimas, assim como as circunstâncias dos crimes.

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CASOS DESTACADOS NA MÍDIA

IBOTIRAMA

Em 12 de janeiro do ano passado, o pedreiro Marcos Almeida Pereira, então com 19 anos, matou o enteado Anderson Santos Silva, de 1 ano e cinco meses, arremessando-o contra uma parede. O crime aconteceu por volta das 22h30, dentro da casa em que vítima e autor moravam com demais familiares, no bairro São Francisco, em Ibotirama, município da região do médio São Francisco, a 648km de Salvador. Preso em flagrante, o acusado responde por homicídio qualificado perante a Justiça. A Ação Penal 1557983-8/2007, deu entrada na Vara Crime local em 5 de fevereiro de 2007 e não registra movimentação desde então. O réu permanece detido.

CAJAZEIRA X

O ex-presidiário Genildo de Carvalho, 28 anos, empregado de um parque de diversões em Cajazeira X, foi surpreendido, no dia 28 de janeiro do ano passado, pela mãe de uma menina de 12 anos, quando começava a despi-la. Denunciado à polícia e preso em flagrante por policiais da 13a Delegacia, ele chegou a responder por crime contra os costumes perante a 1a Vara Especializada Criminal pela Infância e Juventude. Quatro meses depois, em 31 de maio, teve relaxada a prisão. No final de março deste ano, a Justiça deu baixa em seu processo.
SIMÕES FILHO

Flagrado na noite de 31 de janeiro do ano passado, quando praticava sexo oral em um adolescente de 16 anos, dentro de uma caminhonete, no Viaduto da Conceição, km-599 da BR-324 (Simões Filho), o escriturário Eliel Dias de Nóbrega, 48 anos, foi preso por policiais rodoviários federais. Na 22a Delegacia, o delegado plantonista Luís Carlos Ribeiro Souto o autuou por corrupção de menores. Não há evidências de que o caso tenha chegado à instância judicial.


PORTO DA BARRA

Acusada de intermediar encontros sexuais entre adolescentes e turistas estrangeiros, Patrícia Alves dos Santos, 22 anos, foi presa em 4 de fevereiro do ano passado, no Porto da Barra. A delegada Patrícia Nuno, titular da 14a Delegacia, lhe autuou em flagrante por exploração sexual. Três dias depois, o caso chegava à 2a Vara Especializada Criminal pela Infância e Juventude. Decorrido pouco mais de um mês, em 27 de março, ela foi posta em liberdade.
PIRAJÁ

Após praticar sexo oral em um adolescente de 13 anos, portador de distúrbios mentais, o biscateiro Ubirajara Santos de Jesus, 33 anos, manipulava os órgãos do garoto, em plena via pública, nas proximidades da Estação de Transbordo Pirajá. O abuso aconteceu no dia 24 de fevereiro do ano passado, por volta das 7h. Flagrado por policiais militares da 48a Companhia Independente da Polícia Militar (Sussuarana), foi levado à Delegacia Especializada para a Repressão de Crimes contra a Criança e o Adolescente (Derca). Autuado por atentado violento ao pudor, o acusado não chegou a ser processado.

ILHA DE SÃO JOÃO (SIMÕES FILHO)

No dia 14 de março do ano passado, policiais da 8a Delegacia (CIA) foram à localidade de Ilha de São João, município de Simões Filho, averiguar a denúncia de que um menino de 5 anos era mantido em cárcere privado. A equipe foi ao local e se deparou com uma cena chocante: amarrado ao pé de uma cama por um fio de eletricidade atado a uma coleira, lá estava o garoto. A mãe da criança, a dona de casa Joelma Maria Torres, 36 anos, e o companheiro, o agricultor Pedro Araújo Gonçalves, 45, foram autuados em flagrante pelo delegado titular Fábio Melo. Dois dias depois, o caso chegou à Vara Crime de Simões Filho, onde ainda se arrasta. O casal teve deferido o pedido de liberdade provisória, dois meses depois.

ALTO DE COUTOS

Adenilson Oliveira dos Santos Silva, um bebê de 9 meses, foi morto com um golpe de faca, em 8 de abril do ano passado. Estava na casa da avó paterna dele, no subúrbio de Alto de Coutos. O autor, o aposentado Carlos dos Santos Mascarenhas, 40 anos, pretendia matar Ana Paula Santos Silva, 27, tia da criança e ex-namorada dele. No momento da agressão, ela segurava o menino ao colo e foi atingida no peito, mas sobreviveu. Indiciado por homicídio culposo (sem a intenção de matar) pela morte do garoto e por tentativa de homicídio contra a mulher, o acusado teve prisão decretada dias depois. Responde perante a 2a Vara do Júri. Até o momento, houve apenas uma audiência de instrução, em 11 de outubro. A próxima está marcada para 5 de agosto, às 14h. Ele está preso.

LUIS EDUARDO MAGALHÃES

O ex-presidiário Francisco de Assis Silva, 43 anos, residente no município de Luis Eduardo Magalhães, oeste do estado, violentava sexualmente a filha Larissa Rocha Silva, desde que ela era um bebê. Em junho do ano passado, aos 2 anos e sete meses, a menina morreu, em conseqüência das sevícias a que era continuamente submetida. O laudo cadavérico comprovou os abusos. Delatado por vizinhos, a acusado foi preso e autuado em flagrante por atentado violento ao pudor com agravante de homicídio pelo delegado José Resende, titular da delegacia local. Não há registro de que o caso tenha se transformado em ação penal, mas o réu está preso em Barreiras.

LAURO DE FREITAS

Encarregado de tomar conta das enteadas de 3 e 6 anos, o biscateiro Carlos Alberto Santos Araújo, 22, é acusado de violentar a mais nova. O abuso teria acontecido em 13 de julho do ano passado, na casa em que vítima e réu residiam com o restante da família, no Loteamento Parque São Paulo, Itinga, Lauro de Freitas. Denunciado pela mãe da criança, ele foi indiciado em inquérito conduzido pela delegada Maria Dirce Ribeiro, então titular da 27a Delegacia. Teve prisão preventiva decretada duas semanas depois, em 27 de julho pelo juiz André de Souza Dantas Vieira, da Vara Crime local.

SUSSUARANA

Estuprada e espancada selvagemente, a menina Jamile Vitória Alves de Araújo, 2 anos, residente no bairro de Sussuarana, sofreu lesões nos órgãos genitais, hemorragia interna, ruptura de vísceras abdominais e de vasos cerebrais. Morreu quando familiares tentavam socorrê-la. O assassinato aconteceu em 14 de setembro do ano passado, na casa do autor, o biscateiro Anderson Ricardo Oliveira Pinheiro, 21 anos, companheiro da tia dela. Preso em flagrante por policiais da Delegacia de Crimes contra a Criança e o Adolescente (Derca), o acusado foi denunciado pelo Ministério Público por homicídio qualificado. O caso tramita na 1a Vara do Júri de Salvador. A primeira e única audiência de instrução do processo aconteceu no dia 2 de abril deste ano. A tia da vítima, Eliana Luciano dos Santos, responde como co-autora.

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